quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

De quem é a culpa pela desmontagem dos armazéns de ferro do porto de Belém?


Foto: Rodolfo Braga

Nos últimos anos, a funcionalidade econômica do porto da capital paraense vem sendo questionada com frequência. Desde a década de 1970, o porto de Belém sofre com sua inadequação às novas demandas econômicas, que exigem instalações apropriadas para lidar com o processo de automatização e com a introdução dos contêineres e dos gigantescos navios de carga em seus cais, sublinhando, dessa forma, a dificuldade que portos tradicionais, incrustados no meio do centro urbano, começaram a ter para acomodar as novas logísticas portuárias a suas limitadas instalações.
Esses fatores incentivaram o processo de interiorização do porto de Belém, que transferiu grande parte de suas atividades para áreas afastadas, sobretudo para o terminal de Vila do Conde, em Barcarena, inaugurado em 1985. Nesse processo de desestruturação, o porto de Belém vem enfrentando o dilema típico dos portos urbanos tradicionais: como conciliar as necessidades econômicas e de expansão da estrutura portuária com a preservação histórica de um patrimônio subutilizado numa cidade carente de espaços de uso público que vem enfrentando a face mais agressiva dos interesses particulares de poderes locais?
Eis a resposta: na próxima quarta-feira, dia 29 de fevereiro, será aberto o pregão eletrônico da Companhia Docas do Pará – CDP – que selecionará empresa para realizar o serviço de desmontagem, catalogação e armazenamento dos armazéns 11 e 12 do porto de Belém, demonstrando a total desconsideração para com o patrimônio público da sociedade local, a qual, como de costume, não foi consultada sobre o caso.
Não precisamos lembrar que o complexo arquitetônico centenário do porto de Belém é tombado pelo governo do estado do Pará desde o ano 2000, e que, portanto, qualquer interferência em sua estrutura deverá ser realizada com a autorização e o acompanhamento do Departamento de Patrimônio Histórico Artístico e Cultural do estado do Pará (DPHAC-PA).
Ah, não… o DPHAC não autorizou a desmontagem e armazenamento dos armazéns 11 e 12!
A desmontagem dessa delicada estrutura de ferro está presente no conjunto de propostas de intervenção do núcleo portuário da capital, elaborado pela gestão do porto de Belém, a Companhia Docas do Pará – CDP. O Plano de Desenvolvimento e Zoneamento (PDZ), como é conhecido, pretende, em suas palavras, dotar a capital de uma área portuária requalificada na qual integre as atividades econômicas do porto com outros setores, ampliados para fins ligados ao turismo, à cultura e ao lazer. Esse plano, cheio de ideias polêmicas, propõe a desmontagem e reposicionamento dos armazéns 11 e 12 para um local distante da faixa do cais e a remoção dos guindastes de pórtico existentes, hoje obsoletos, para que o pátio de contêineres seja ampliado, aumentando, desse modo, a capacidade de armazenamento de mercadorias destinadas à exportação. De acordo com o PDZ:

“a expansão da área de estocagem dos berços preferenciais de navios de contêineres poderá ser obtida com a integração de parte da Rua Rui Barata ao espaço operacional já existente, inclusive a área à retaguarda da referida travessa, a qual deverá abrigar o novo prédio a ser construído pelo reposicionamento dos antigos armazéns 11 e 12, respeitados os conceitos e estilos arquitetônicos e históricos a serem preservados (…) a remoção dos guindastes existentes nos berços 4 e 5 e o reposicionamento dos armazéns 11 e 12 ficará condicionada à obtenção das licenças a serem conseguidas nas instituições responsáveis pelo patrimônio histórico” (CDP-PDZ, 2003: 6)

Embora a CDP admita acima que a remoção e o reposicionamento dos armazéns estejam condicionados à autorização do DPHAC, o que se verifica na prática é a total fragilidade, o desprestígio e a improficiência dos nossos órgãos de proteção ao patrimônio cultural em arbitrar sobre objetos de sua própria competência, visto que não só sua desmontagem e armazenamento acontecerão, à revelia das determinações do DPHAC e Ministério Público, como não há previsão para o reposicionamento dessas gigantescas estruturas.
O mais problemático de toda essa situação, é a estreiteza de se tentar criminalizar a CDP como demolidora do patrimônio da cidade. A CDP não é empresa versada em patrimônio cultural. Se a sua ignorância acerca da importância da conservação do complexo arquitetônico do porto de Belém em seu contexto geográfico pode não ser justificada, em todo caso ela é reflexo de uma sociedade totalmente alienada sobre seu patrimônio cultural e que, por tabela, desconhece as atribuições legais dos seus órgãos gestores do patrimônio e a sua própria responsabilidade enquanto cidadãos em fiscalizar e opinar sobre possíveis interferências a esses bens culturais.
Numa sociedade em que o poder executivo responsável pela preservação de nossa história parece estar em visível falência (ou talvez nunca tenha existido, na prática?), qual será a saída para impedir a privatização do patrimônio cultural de uma sociedade que, em boa medida, nem o conhece?
Nesse cabo de guerras entre poderes públicos e privados, a sociedade civil organizada ainda não acordou para a necessidade imprescindível de sua participação na gestão integrada, participativa e democrática do patrimônio cultural. Até quando vamos permitir que o patrimônio arquitetônico de Belém seja assunto de poucos, cujos interesses oblíquos resultam sempre em prejuízo ao conjunto urbano, transformado em um espaço que nega sua história e memória a despeito da imperativa modernidade urbana e de interesses particulares?

Para saber mais sobre os desafios para o patrimônio portuário de Belém-PA, acesse:

Texto: Luciana Furtado - Historiadora, Vice-presidente da ASAPAM

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