Devotos
portugueses já levavam as imagens de seus santos padroeiros de uma aldeia à
outra no final da Idade Média. Para iluminar o caminho e louvar o homenageado,
os fiéis levavam consigo grandes velas; no Brasil, apenas no Estado do Pará, a
palavra Círio – que vem do latim cereus e,
etimologicamente, significa “grande vela de cera” – tornou-se sinônimo de
procissão, a procissão de Nossa Senhora de Nazaré.
Imagem 1: Procissão do Círio no Largo de Sant’Ana. Fonte: Acervo IMGB, Rio de Janeiro. |
Plácido
era paraense, agricultor e caçador, e um homem simples e devoto. Segundo uma
lenda local, Plácido teria um dia, enquanto voltava para casa, encontrado uma
pequena imagem de uma santa entre pedras lodosas às margens do igarapé do Pirí.
Ele
levou a Santa envolvida com um manto de seda brilhante para casa. No dia
seguinte, quando foi procurá-la, encontrou completamente vazio o pequeno altar
onde a guardou. E quando voltou ao local onde a Santa fora encontrada ela
estava lá, passando a impressão de que tivesse retornado ao lar. Plácido
apanhou a imagem e mais uma vez a levou para casa. Novamente no dia seguinte
ela não amanheceu onde foi deixada e já era de se esperar o local onde ela
deveria estar.
Não
se sabe quantas foram as vezes que Plácido levou a imagem para sua casa e ela
voltou sozinha para as margens do igarapé. Devido a este fato, Plácido construiu
um pequeno oratório no local do achado que batizou de “O coração do Humilde”, e
foi então que teve início a devoção à Nossa Senhora de Nazaré em Belém do Pará.
O Círio como
Patrimônio Cultural
A Festividade de Nazaré
tem uma importância cultural muito grande para o Estado do Pará, já que engloba
muitos assuntos pertinentes ao modo de vida e da cultura local, tais como:
pratos típicos servidos no tradicional almoço do Círio, as diversas exposições
artísticas e apresentações populares na cidade, o arraial, dentre outras
manifestações.
Fotografia 2: Corda do Círio. Fonte: Internet (2011) |
O Círio é uma manifestação religiosa e
cultural da sociedade paraense, que sofreu influência dos portugueses que
cultuavam a Virgem desde o Cristianismo e vieram para o Brasil com os primeiros
religiosos jesuítas. Porém, a devoção à Nossa Senhora de Nazaré, mais
precisamente em Belém, se deu a partir do achado da imagem da Santa por um
humilde morador da Estrada do Utinga, chamado Plácido José de Souza.
No
Pará, o culto à Virgem de Nazaré ocorreu primeiramente na cidade interiorana de
Vigia, o que deixa claro a multiplicidade das formas de pensamento e das
características desses povos, os portugueses e os paraenses, fato que
configurou o Círio numa manifestação religiosa que ao longo dos anos veio se
adequando e caracterizando seu perfil ao dos habitantes de uma cidade que é
movida, sobretudo, pela fé.
O Círio como Patrimônio Imaterial
Patrimônio Imaterial é o conjunto de bens culturais que
abrange usos, costumes festas, folguedos, música, dança, entre outras coisas, e
o Círio de Nazaré se enquadra nesse contexto porque nele podem-se encontrar
vários elementos das duas tradições culturais que contribuíram para a formação
do povo paraense, que foram a indígena, com sua culinária e a portuguesa com
seus elementos que nos remetem aos Círios de Portugal, como as crianças
vestidas de anjo, por exemplo.
Fotografia
3: De joelhos. Fonte: Internet (2011). |
O Círio de Nazaré foi registrado, pelo
IPHAN, como Bem Cultural de Natureza Imaterial, sendo o único bem registrado no
Livro das Celebrações do Programa Nacional do Patrimônio
Imaterial
(PNPI) em 05/10/2004.
O
Círio é uma manifestação religiosa que ocorre em Belém há mais de duzentos anos,
e reúne anualmente cerca de dois milhões de pessoas em uma caminhada de fé e
emoção pela capital do Estado do Pará com o objetivo de homenagear a mãe de
Jesus, Nossa Senhora de Nazaré.
Durante tantos anos de
existência, o Círio é uma tradição que envolve valores, devoção e fé que são
passados de geração em geração. É a união de pessoas que passam pela infância,
juventude e maturidade esperando ansiosamente pelo segundo domingo do mês de
outubro para despertarem cedo de um sono mal dormido, diante de tanta
inquietação e euforia para verem passar pelas ruas da cidade uma imagem
pequenininha, mas de uma grandiosidade indescritível e inigualável, e sentirem
o bálsamo e a benção sendo derramados diretamente em suas almas, não importando
o calor, o cansaço e a dor, é uma “pororoca” de devotos movidos por algo maior
que eles mesmos, a fé.
E como se não fosse suficiente, depois de
terem visto a “santinha” todos seguem satisfeitos para suas casas aguardando o
momento de confraternizar, de rever os parentes que moram distante, os velhos e
novos amigos para então saborearem os pratos típicos, a maniçoba e o pato no
tucupi.
Depois de tantos momentos
de alegria e celebração é chegado ao fim mais um Círio de Nazaré, mas no ano
que vem tudo irá se renovar e é por isso que há tanto tempo esse extraordinário
acontecimento cresce em número de romeiros, promesseiros, adeptos e
simpatizantes.
O Círio de Nossa Senhora de Nazaré é a
mais fiel expressão da identidade e valorização da memória de um povo devoto,
religioso e orgulhoso de sua cultura, fato que o torna o patrimônio imaterial
mais expressivo do Estado do Pará e tem na fé sua continuação e salvaguarda.
A simbologia Santa e
Berlinda
Estudos
mostram que os símbolos não se constituem naturalmente, eles são criados pela
própria sociedade para fazer alusão a alguma situação. Há a necessidade de
interpretá-los relativamente à sua significância.
No caso do
Círio, a santa na berlinda e seus elementos como: o manto, o globo,
os anjos, as coroas, a própria Maria carregando o menino Jesus criam uma
relação direta de fé, devoção, emoção entre a sociedade e esse símbolo
religioso.
Imagem 4: A Santa na Berlinda. Fonte: Internet (2011). |
Relativo ao
manto, todos os anos se cria uma grande expectativa sobre que manto vestirá
Nossa Senhora, e que artista irá confeccioná-lo. Mas além da indiscutível
beleza visual e estética, é importante salientar que muitas mensagens de paz,
fé e esperança já foram transmitidas por meio dos elementos visuais contidos no
manto, sempre buscando o bem da humanidade em geral.
Para os
devotos, ver a Mãe de Jesus carregando seu Filho nos braços, dentro de uma
berlinda dourada, que guarda a “Rainha da Amazônia”, tão delicadamente
ornamentada com flores, sendo puxada por uma corda de fé que enlaça a alma e o
coração de cada um dos milhões de filhos que se fazem presentes nas ruas de
Belém, derramando sobre eles suas bênçãos e vos acolhendo, sejam eles menos ou
mais favorecidos, brancos ou negros, saudáveis ou enfermos, “normais” ou
especiais, conterrâneos ou turistas, é o alcance da plena satisfação espiritual
e maternal.
Acreditar e
confiar que existe uma Mãe soberana que nos guarda sob o seu manto, protegendo
cada um de nós de todos os males terrenos, não tem sol, cansaço ou dor que se
faça maior que a vontade de estar com Ela todos os anos e é por isso que na
alma do paraense é sempre outubro.
Círio de Nazaré: A Construção de um imaginário
No mês de outubro, mais
especificamente na segunda semana, a cidade de Belém se transforma na grande
capital da fé. Milhões de turistas se deslocam de suas cidades, Estados e até
países para participarem do Círio de Nazaré.
Há uma
ansiedade geral em torno da visão da imagem da santa em sua berlinda, ícone da
procissão, acompanhada pela devoção dos fiéis que, mesmo debaixo do sol e da
dor de terem seus pés esmagados e ainda queimados pelo asfalto quente, não
desistem de andar lado a lado com sua “mãezinha”, seja na corda - que é ícone e
a expressão maior da gratidão pela graça já alcançada ou daquela que está por
se alcançar - seja pelas calçadas.
Outro ponto significativo
da celebração é observar
os promesseiros que fazem todo o percurso de joelhos, sendo ajudados por
voluntários, num gesto de generosidade, compaixão e solidariedade. Como
conseqüência de tantas manifestações visuais de forte apelo emocional, se
constrói toda uma expectativa imaginária sobre o acontecimento.
Quando os
turistas deixam suas casas trazem consigo sonhos, euforias, curiosidades, vêm
cheios de esperanças e querem constatar o que ficaram sabendo ou ouviram falar,
o que é divulgado na mídia, através de jornais, revistas e sites, ou ainda por
quem viveu a emoção à flor da pele e compartilhou com o outro.
A cidade se
movimenta em torno desta manifestação religiosa, com os aromas que se espalham
do ar da maniçoba cozinhando oito dias no fogo, o tucupi do preparo da iguaria
com o pato, com as ruas mais limpas e ornamentadas, com as casas passando por
pequenas reformas, tudo para receber a “Rainha da Amazônia”, a mais ilustre
convidada.
Texto: Verena Merícias
Verena Merícias é Artista Visual e Tecnóloga da Imagem, especialista em Patrimônio Cultural e Educação Patrimonial.
Contato: vmericias@hotmail.com
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