Foto: Rodolfo Braga |
Nos últimos anos, a funcionalidade
econômica do porto da capital paraense vem sendo questionada com frequência.
Desde a década de 1970, o porto de Belém sofre com sua inadequação às novas
demandas econômicas, que exigem instalações apropriadas para lidar com o
processo de automatização e com a introdução dos contêineres e dos gigantescos
navios de carga em seus cais, sublinhando, dessa forma, a dificuldade que
portos tradicionais, incrustados no meio do centro urbano, começaram a ter para
acomodar as novas logísticas portuárias a suas limitadas instalações.
Esses fatores incentivaram o processo de
interiorização do porto de Belém, que transferiu grande parte de suas
atividades para áreas afastadas, sobretudo para o terminal de Vila do Conde, em
Barcarena, inaugurado em 1985. Nesse processo de desestruturação, o porto de
Belém vem enfrentando o dilema típico dos portos urbanos tradicionais: como conciliar
as necessidades econômicas e de expansão da estrutura portuária com a
preservação histórica de um patrimônio subutilizado numa cidade carente de espaços
de uso público que vem enfrentando a face mais agressiva dos interesses
particulares de poderes locais?
Eis a resposta: na próxima quarta-feira,
dia 29 de fevereiro, será aberto o pregão eletrônico da Companhia Docas do Pará
– CDP – que selecionará empresa para realizar o serviço de desmontagem,
catalogação e armazenamento dos armazéns 11 e 12 do porto de Belém,
demonstrando a total desconsideração para com o patrimônio público da sociedade
local, a qual, como de costume, não foi consultada sobre o caso.
Não precisamos lembrar que o complexo
arquitetônico centenário do porto de Belém é tombado pelo governo do estado do
Pará desde o ano 2000, e que, portanto, qualquer interferência em sua estrutura
deverá ser realizada com a autorização e o acompanhamento do Departamento de
Patrimônio Histórico Artístico e Cultural do estado do Pará (DPHAC-PA).
Ah, não… o DPHAC não autorizou a desmontagem
e armazenamento dos armazéns 11 e 12!
A desmontagem dessa delicada estrutura
de ferro está presente no conjunto de propostas de intervenção do núcleo
portuário da capital, elaborado pela gestão do porto de Belém, a Companhia
Docas do Pará – CDP. O Plano de Desenvolvimento e Zoneamento (PDZ), como é
conhecido, pretende, em suas palavras, dotar a capital de uma área portuária
requalificada na qual integre as atividades econômicas do porto com outros
setores, ampliados para fins ligados ao turismo, à cultura e ao lazer. Esse
plano, cheio de ideias polêmicas, propõe a desmontagem e reposicionamento dos
armazéns 11 e 12 para um local distante da faixa do cais e a remoção dos
guindastes de pórtico existentes, hoje obsoletos, para que o pátio de
contêineres seja ampliado, aumentando, desse modo, a capacidade de armazenamento
de mercadorias destinadas à exportação. De acordo com o PDZ:
“a
expansão da área de estocagem dos berços preferenciais de navios de contêineres
poderá ser obtida com a integração de parte da Rua Rui Barata ao espaço
operacional já existente, inclusive a área à retaguarda da referida travessa, a
qual deverá abrigar o novo prédio a ser construído pelo reposicionamento dos
antigos armazéns 11 e 12, respeitados os conceitos e estilos arquitetônicos e
históricos a serem preservados (…) a remoção dos guindastes existentes nos
berços 4 e 5 e o reposicionamento dos armazéns 11 e 12 ficará condicionada à
obtenção das licenças a serem conseguidas nas instituições responsáveis pelo
patrimônio histórico” (CDP-PDZ, 2003: 6)
Embora a CDP admita acima que a remoção
e o reposicionamento dos armazéns estejam condicionados à autorização do DPHAC,
o que se verifica na prática é a total fragilidade, o desprestígio e a
improficiência dos nossos órgãos de proteção ao patrimônio cultural em arbitrar
sobre objetos de sua própria competência, visto que não só sua desmontagem e
armazenamento acontecerão, à revelia das determinações do DPHAC e Ministério
Público, como não há previsão para o reposicionamento dessas gigantescas
estruturas.
O mais problemático de toda essa situação,
é a estreiteza de se tentar criminalizar a CDP como demolidora do patrimônio da
cidade. A CDP não é empresa versada em patrimônio cultural. Se a sua ignorância
acerca da importância da conservação do complexo arquitetônico do porto de
Belém em seu contexto geográfico pode não ser justificada, em todo caso ela é
reflexo de uma sociedade totalmente alienada sobre seu patrimônio cultural e
que, por tabela, desconhece as atribuições legais dos seus órgãos gestores do
patrimônio e a sua própria responsabilidade enquanto cidadãos em fiscalizar e opinar
sobre possíveis interferências a esses bens culturais.
Numa sociedade em que o poder executivo responsável
pela preservação de nossa história parece estar em visível falência (ou talvez
nunca tenha existido, na prática?), qual será a saída para impedir a
privatização do patrimônio cultural de uma sociedade que, em boa medida, nem o
conhece?
Nesse cabo de guerras entre poderes
públicos e privados, a sociedade civil organizada ainda não acordou para a
necessidade imprescindível de sua participação na gestão integrada,
participativa e democrática do patrimônio cultural. Até quando vamos permitir
que o patrimônio arquitetônico de Belém seja assunto de poucos, cujos
interesses oblíquos resultam sempre em prejuízo ao conjunto urbano,
transformado em um espaço que nega sua história e memória a despeito da
imperativa modernidade urbana e de interesses particulares?
Para
saber mais sobre os desafios para o patrimônio portuário de Belém-PA, acesse:
Texto: Luciana Furtado - Historiadora, Vice-presidente da ASAPAM