Ninguém contribuiu mais que o médico Dorvalino Braga para que o prédio do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira estivesse, hoje, incorporado à História da Cultura do Pará. Ao longo de 60 anos, Dorvalino contribuiu não só para inserir o prédio definitivamente na História da Psiquiatria do Pará, como diretor do hospital. Quando já havia deixado aquele cargo, ele contribuiu também, como simples cidadão, para a preservação da memória do Juliano Moreira, após a demolição dele, em 1984. Por causa de um detalhe arquitetônico - as grades nas janelas -, o prédio do hospital já fazia parte das inquietações de Dorvalino, dez anos antes de ele iniciar, em 1955, a primeira de suas três gestões na direção do Juliano Moreira.
Ainda aluno de Medicina, ele se sentia incomodado com aquelas grades, numa reação que prenunciava sua atuação posterior, como médico. “Quando eu passava em frente ao prédio do Juliano Moreira, me chocava o espetáculo deprimente dos doentes pendurados, como bichos, nas grades do hospital”, confessou Dorvalino, há um mês, num depoimento ao Grupo de Memória da Engenharia, da UFPA. Dorvalino chegou a iniciar um programa de mudanças no hospital,quando foi empossado na sua direção, poucos anos depois de se formar. Porém, “por razões políticas” o programa foi interrompido, como ele explica num relato escrito para o livro “História, Loucura e Memória – O acervo do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira”, editado pela Secult, em 2009.
Depois do afastamento de Dorvalino, o hospital foi abandonado, o que quase antecipou a destruição dele, ocorrida só em 1984. “Seguise um período de declínio, com sucessivas mudanças de direção, determinadas por injunções políticas, desacertos administrativos de consequências calamitosas para os doentes - que, em 1962, revoltados, tentaram incendiar o hospital”, registrou Dorvalino, naquele relato.
Enquanto isto acontecia no hospital, o próprio Dorvalino seguia uma rota em sentido oposto. Beneficiado com uma bolsa de estudos no centro psiquiátrico mais importante do país, naquele momento, o Hospital Dom Pedro II, do Rio de Janeiro, Dorvalino tratou de melhorar o quanto possível sua capacitação profissional. Ele estava consciente dos preconceitos contra doentes mentais, dentro da própria área médica, que dificultavam o trabalho dos psiquiatras, no Pará. “Os doentes mentais viviam alijados da Medicina. Ninguém se interessava por eles”, revelou Dorvalino no depoimento.
O Hospital Dom Pedro II estava sob direção de Odilon Galotti, um psiquiatra respeitado internacionalmente. Foi ele quem traduziu para o Português as obras completas de Freud, publicadas em 10 volumes pela Editora Delta.
Hoje, o médico é nome de rua em Florianópolis. Dorvalino teve a sorte de contar durante seu estágio com bons professores argentinos, e, com uma excepcional professora brasileira, Nise da Silveira. Ela fora perseguida pela ditadura de Getúlio Vargas, depois de 1937. Se tornara companheira de prisão de Graciliano Ramos, que fez dela personagem de “Memórias do Cárcere”, Nise combatia bravamente as formas de tratamento psiquiátricos agressivos utilizados na época. Especialmente o confinamento dos pacientes e as terríveis lobotomias que tornava os pacientes meros espectros humanos. Apoiado nestes professores, Dorvalino aprofundou mais sua repulsa pelas grades do Juliano Moreira. “Durante aquele ano, no Rio de Janeiro – disse ele, em seu depoimento –, vivi exclusivamente para estudar”.
Quando Dorvalino retornou ao Pará, ocorreu o Golpe Militar de 1964. E, num episódio típico da época, ele foi nomeado, pela segunda vez, diretor do Juliano Moreira, pelo líder dos golpistas no Pará, Jarbas Passarinho, sem sequer ser consultado. Com bom humor, Dorvalino conta que a portaria da nomeação lhe foi entregue em sua residência, de surpresa, por Eleison Cardoso, diretor da Divisão de Saúde Federal, no Pará, num momento inesquecível, para ele, por sua total inconveniência. Dorvalino se encontrava acamado, tentando resistir às dores da mordida de uma arraia.
Quando pôde conversar com o governador Jarbas Passarinho, empossado pelos golpistas, após a deposição de Aurélio do Carmo, Dorvalino logo mencionou sua intenção de retirar as grades do Juliano Moreira. Jarbas aconselhou-o a retirá-las aos poucos, para não gerar reação entre os políticos e na imprensa. Uma recomendação de prudência que Dorvalino simplesmente ignorou. “Entrei como um tufão na direção do hospital. No dia seguinte ao da minha posse, mandei tirar todas as grades”. Aquela alteração no Juliano Moreira - pequena, do ponto de vista arquitetônico -, ganhou uma dimensão histórica que tornou maior a perda total do prédio do hospital, em 1984. A alteração serviu para documentar, no prédio, a mudança dentro da História da Psiquiatria do Pará. Os pacientes do hospital ficaram livres do confinamento num momento de crise da democracia brasileira, quando Nise Silveira voltou a ser perseguida. E, paraenses, como Ruy Barata, Benedito Monteiro e Raimundo Jinkings foram colocados atrás de grades de prisões. Iguais às que existiram no Juliano Moreira. (Diário do Pará, coluna de Oswaldo Coimbra)